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Desistir nem sempre é ruim: saiba lidar com a culpa e romper ciclos tóxicos

Por que desistir é tão difícil? Veja as razões psicológicas envolvidas para superar a culpa e descubra como fazer escolhas mais autênticas.

Desistir. É doloroso e difícil verbalizar essa palavra para alguém. Interromper um relacionamento, um curso de graduação, uma viagem dos sonhos ou uma meta importante é, no mínimo, difícil. Às vezes, parece até mais um crime do que uma ação comum que necessariamente ocorreria em diferentes momentos da vida, mesmo que você não queira. Mas desistir é tão ruim assim? A Vida Simples ouviu especialistas que ajudam a compreender por que decidir por abandonar algo traz tantas complicações.

No Brasil, é comum ouvir que somos um povo persistente, que não desiste fácil e, apesar de todas as dificuldades, buscamos superá-las. Quem já não ouviu a frase “brasileiro não desiste nunca?”. Para a psicanalista e fundadora da ONG Ipefem, Ana Tomazelli, isso tem a ver com suportar o sofrimento e obstáculos, mas sem considerar a matemática completa. “Há um custo por não desistir de algo e isso se torna incompatível com nossos desejos.”

Para a especialista, é frequente nos comprometermos com demandas sociais e pressões externas que podem não ser compatíveis com os interesses pessoais. “O que é uma fórmula quase certa para a infelicidade”, diz.

Podemos ser o que quisermos?

Há alguns anos, o conceito físico de resiliência passou a ser frequente nas conversas sobre relações humanas. A capacidade de voltar ao estado “normal” com rapidez após uma situação de pressão ou estresse é tópico de entrevistas de emprego até hoje. Profissionais que, mesmo sob intensas cobranças, conseguem manter uma postura emocional de estabilidade, são valorizados nas empresas.

“Essa ideia nos leva a mais alguns problemas que são: retiramos a contingência da equação e partimos para um pensamento absolutamente Cartesiano”, explica Guilherme Facci, psicanalista e host do podcast A loucura nossa de cada dia.

“A expressão ‘Penso, logo existo’ rapidamente deriva para um equação perigosa que é ‘Penso, logo posso’ e ‘Se posso, devo!’”, alerta.

Para ele, o pensamento psicanalítico contribui para trazer limites às próprias fantasias humanas. “Nos permite sair, porque a saída de uma análise é uma saída com possibilidade de escolha e decisão”, demarca. Nesse contexto, tomar uma decisão é bem diferente de desistir de algo. “A desistência guarda espaço para uma repetição da mesma situação logo adiante. Um desejo decidido, não.”

Por que é tão difícil desistir?

Sair de um relacionamento abusivo pode levar anos. Deixar um emprego tóxico para trás nem sempre ocorre da noite para o dia. Largar pequenos vícios pode ser mais difícil que se imagina. Uma pessoa com TOC (Transtorno obsessivo-compulsivo), por exemplo, pode levar anos para romper esse ciclo.

“Existe uma questão central que normalmente não levamos em consideração, justamente porque é algo inconsciente, que é o nosso ‘impulso à repetição‘”, explica Guilherme Facci. O conceito surgiu a partir do neurologista e psiquiatra Sigmund Freud no texto célebre Além do princípio do prazer (1920).

“Ele observou que nas neuroses podemos insistir em algo desprazeroso porque podemos ter um ganho ‘secundário’ nessa situação.” E isso pode ocorrer tanto em ações que tragam prazer quanto naquelas desprazerosas. “Por isso, algo que ‘racionalmente’ parece absurdo, como uma relação de trabalho abusiva ou uma relação amorosa violenta, não está tão claro para a pessoa que vivencia.”

A questão passa a ser: eu quero o que desejo? Estou disposto a bancar ou não o meu desejo? Estou disposto a abdicar do ganho que tinha naquela posição anterior? “São questões radicalmente éticas”, enfatiza o especialista.

A culpa é um problema. Mas, então, como resolvê-la?

“É considerado vergonhoso deixar algo de lado, ‘no meio do caminho’. Há incompreensão, julgamento e uma culpa de que ‘poderia ter feito diferente’”, explica Ana Tomazelli.

“O problema é que a maioria das pessoas se equilibra entre a vontade de ter garra (e ser reconhecida por isso) e o medo de parecer covarde (e ser julgada por isso)”, justifica.

Ela especifica que buscar ajuda profissional terapêutica é um caminho seguro e recomendável. “Mas, não menos importante, é preciso decidir quem se quer ser. E isso passa pela coragem de não ser amado. Esse passo é o mais difícil de todos”, diz.

Guilherme Facci acrescenta ainda que há uma maior presença da lógica das redes sociais na sociabilidade humana. Para o psicanalista, as idealizações estão cada vez mais impossíveis. “É claro que não podemos viver sem idealizar algo, mas o nível de comparação e manipulação de imagem (não apenas física) que as redes sociais proporcionam é um convite para sentimentos como a ‘Culpa’ e a ‘Vergonha.’”

Segundo o profissional, isso pode gerar à desistência mesmo antes do primeiro passo. “Precisamos dar contorno a esse imaginário inflacionado, saber um pouco mais de nosso próprio Estilo, que é a nossa marca no mundo. Uma marca da ‘Diferença’, e não da tentativa de nos ‘igualarmos’ ao ideal do outro”, finaliza.

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